Pedro de Mendoza
Queria escrever sobre as paredes da casa. Queria escrever com palavras que tivessem o peso das pedras. Se um dia escrevesse sobre a casa começaria com a frase “Era uma vez”, mas os poemas não podem começar com “era uma vez” porque não têm o tempo das pessoas. Queria escrever sobre a casa, contar toda a sua história desde o princípio do tempo até hoje e depois, no futuro. Mas os poemas hoje não contam histórias, não têm casas, paredes, quartos, portas, corredores, janelas que se abrem para o mundo e que protegem das estações, pessoas que as habitam. Era uma vez uma casa, uma casa agora velha, gasta, manchada pelo tempo, pela vida de pessoas, uma casa que se fez com os anos, que se foi metamorfoseando com as necessidades das pessoas que nela habitaram. Hoje a casa está só. Vazia, mas milhares de sonhos dormiram nos seus quartos, correram pelos corredores, cruzaram as suas portas, viram o acontecer do mundo através dos vidros das janelas. A casa que, em tempos idos, foi o centro de tudo. No início, a casa era uma capela de invocação a uma Santa Católica. A capela abençoava os laranjais. Os pomares. Houve um homem que mandou amanhar os campos, mandou construir o mirante no cimo do monte, de onde se avistavam os barcos e mandou erguer a capela, pedindo a Deus que lhe protegesse as colheitas. Daí a casa foi-se fazendo. Juntaram-se os anexos, as lojas, a cozinha, os quartos, salas, com o passar dos anos e das gerações, de avós para netos, de pais para filhos, de tios para sobrinhos, vinte, cinquenta, cem, trezentos anos. Hoje ela está só. A trepadeira que mandaram plantar quando nasceu a segunda filha da quinta geração e que cobria toda a fachada da casa de folhas verdes e castanhas, conforme as estações, está agora solta, fora do domínio dos jardineiros que a podavam com mãos sábias, cobriu todo o telhado, tapou as janelas, imiscuiu-se pelas frinchas e invadiu os quartos. Das paredes já só se vê a torre alta do lado sul. A casa que foi durante tantos anos um projecto de vida. O centro da existência de tantas pessoas, de tantas gerações. A casa era o pólo aglutinador da família, a força centrífuga. A força criadora e destruidora de tudo. A casa viveu nascimentos, sofreu com as mortes, fomentou amores, potenciou desavenças, ódios. A casa abandonada pelo riso das crianças, que corriam pelos corredores no jogo da apanhada, a memória imprecisa do tilintar de uma jarra partindo-se em estilhaços no chão. A casa é hoje apenas uma ideia do que foi no passado. A casa é hoje um nevoeiro onde habitam fantasmas. Uma ruína curvada pelo peso de vidas passadas, uma história contada nas rugas dos materiais, no pó. A coberto do manto desse passado está a vida silenciosa desse espaço que não fala por palavras nem por gestos, mas pelo passar dos dias e dos anos, inexoráveis. A casa é todo um universo. A casa é toda a ideia que se fez dela, as estórias que se contaram de um para outro, de tempo para tempo. Todo um desejo de eternidade cravado nas paredes. Um desejo de absoluto. Hoje a casa está só, sem ninguém, vazia de si mesma. O que fica das coisas sem vidas que as habitem?
domingo, 30 de dezembro de 2007
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